Cardapio "Fome de quê?" os almoços para a Bontempo Móveis Brasília/2023


FOME DE QUÊ?

    A obra intitulada “Fome de quê” foi desenvolvida e aplicada como uma experiência imersiva para almoços, composta por obras plásticas, playlist, cardápio e narrativa, com a finalidade de provocar os convidados a (re)pensar e (re)apropriar-se¹ do feijão como alimento que já foi o escolhido pelos brasileiros.
    Nossa história culinária é um verdadeiro caldeirão de influências, e o feijão, com sua presença marcante na mesa brasileira, revela nuances profundas de nossa identidade gastronômica. Desde os tempos coloniais, o feijão foi introduzido no Brasil pelos portugueses, mas sua trajetória foi moldada pela diversidade cultural que caracteriza nossa nação.
    Ao debruçar-nos sobre a panela de feijão, percebemos que cada grão conta uma história. Os sabores que emanam desse prato cotidiano carregam consigo o peso dos séculos de encontros e confrontos culturais. As tradições alimentares africanas, indígenas e europeias entrelaçaram-se, resultando em um prato que, por sua simplicidade, tornou-se complexo em significado.
    A decolonialidade nos convida a questionar as histórias que contamos ao redor prato. O feijão, muitas vezes subestimado como mero alimento básico, emerge como um símbolo potente de resistência. Ao reconhecer as contribuições das comunidades afro-indígenas à nossa culinária, estamos decolonizando nossa narrativa alimentar.
    Para avançarmos nessa jornada de resgate e reconhecimento, é crucial refletir sobre as práticas contemporâneas na cozinha e na mesa. Valorizar os conhecimentos tradicionais, respeitar as diferentes formas de cultivo e produção do feijão, e promover a equidade nas relações alimentares são passos essenciais na busca por uma abordagem decolonial.
    Inspirado pela riqueza e diversidade dessa leguminosa foi importante explorar o feijão de forma transdisciplinar, indo além da culinária, representando-o de diversas formas em variadas disciplinas, como na Arte além da Gastronomia buscando conceituá-lo em pinturas, esculturas etc, assim como quando conduzimos o grão em abordagens sociais e históricas.
    O processo criativo envolveu a pesquisa sobre a história e a cultura do feijão no Brasil, bem como a experimentação, as diversas possibilidades que esse alimento oferece com diferentes técnicas e materiais para representar a leguminosa de forma criativa e original. Foi desenvolvido durante o período dos seis últimos meses do ano de 2022 e os dois primeiros de 2023, sendo a experiência apresentada durante os dez meses posteriores encerrando em dezembro de 2023.
    Entre os desafios enfrentados de criar uma obra centrada no feijão o maior foi o de evitar clichês e estereótipos. Por isso a importância de se buscar uma abordagem original e autêntica, que refletisse a diversidade e a complexidade da cultura brasileira. Além disso, se levou em consideração a relação entre a obra e o público, buscando uma linguagem acessível e significativa diante da exposição de variadas técnicas e estilos para retratar um alimento tão popular.
    Também posso citar o curto espaço de tempo para criar a experiência do zero até a finalização como outro fator instigante, por isso a utilização da tinta acrílica na maioria das obras, o que possibilitou uma secagem mais rápida, mas o que em alguns momentos auxiliava no processo, em outros se constituía em mais um desafio pois durante o tempo de seca em Brasília a tinta secava muitas vezes no próprio pincel.
    A leguminosa sofreu a intervenção se transformando em quadros e esculturas de vários tamanhos e estilos que a representam, entre os quais:
  • Acrílico sobre tela (Geometrismo abstrato, pop art, pós-impressionismo, cubismo) utilizando de técnicas desde a pintura com pinceis, empaste com espátulas;
  • Assemblage - colagem e tinta acrílica. (Arte contemporânea);
  • Escultura em porcelana fria esmaltada;
  • Escultura em porcelana fria com colagem de folhas de ouro;
  • Aquarela sobre papel;
  • Pastel oleoso sobre papel.
    As esculturas e pinturas transformaram esse elemento “simples” em peças de arte que ressoam com a essência cultural do país, enquanto a narrativa descrita durante a experiência retratava a jornada do feijão desde o plantio até o prato, destacando a conexão entre a terra, a relação entre as famílias de agricultores no campo e a mesa brasileira.
    No contexto da arte relacionada à gastronomia, o processo foi executado com estudo e experiências até alcançar um resultado harmonioso e que finalizasse de forma a impactar, garantindo que a experiência não fosse esquecida pelos convidados.
    A criação refletiu em um cardápio autoral tendo o feijão como protagonista que alcançou uma forma interessante de explorar as possibilidades culinárias desse alimento e de integrar diferentes linguagens artísticas em uma experiência única e completa refletida no cardápio a seguir:
  • Entrada – Feijões verdes frescos com Ovo mollet ao molho Gambraise – Trazer qualidade sem agrotóxico para o cliente, colheita recém feita, orgânica, lembranças de família, quando meu avô voltava da horta com feijões verdes para serem debulhados e consumidos ainda frescos em forma de salada e que junto com técnicas adaptadas da gastronomia francesa, como o molho Gambraise (gambiarra do holandaise), uma mistura desenvolvida de uma desconstrução do molho holandaise.


  • Primeiro prato –Macarajé. Cabelinho de anjo de amido de feijão fradinho com molho de vatapá, camarão grelhado telha de arroz frita em dendê e pimenta. O sabor da Bahia, sem cometer sacrilégios vinculando o que é cultural ou sagrado para tantos, relacionando com a história contada por Coralina de Jesus quando falou “Antigamente era a macarronada o prato mais caro. Agora é o arroz e feijão que suplanta a macarronada. São os novos ricos. Passou para o lado dos idalgos. Até́ vocês, feijão e arroz, nos abandona! Vocês que eram os amigos dos marginais, dos favelados, dos indigentes. Vejam só. Até o feijão nos esqueceu. Não está́ ao alcance dos infelizes que estão no quarto de despejo. ” (Carolina Maria de Jesus, 1992 Quarto de despejo - Diário de um Favelada).


  • Prato principal – “Na terra não há pão” Garantido de feijão cozido com charque e requeijão de tacho, pirão de café feito no caldo do cozimento do feijão. Trazer referências de uma combinação que está na boca do brasileiro há muitos séculos, feijão e farinha de mandioca, em uma combinação de sabores com outros elementos que construíram a história do nosso comércio, como o charque e o café.



  • Sobremesa – Gran gateau feijuca - Picolé de feijão preto com bacon caramelizado sobre arroz doce, brigadeiros de couve, jujubas de feijão, laranja cristalizada, crocante de arroz brûlée e calda de laranja. “Fiz a comida. Achei bonito a gordura frigindo na panela. Que espetáculo deslumbrante! As crianças sorrindo vendo a comida ferver nas panelas. Ainda mais quando é arroz e feijão, é um dia de festa para eles”. (Carolina Maria de Jesus, 1992 Quarto de despejo - Diário de um Favelada).





    No contexto que compõe a experiência demonstrada anteriormente, das quatorze (14) obras plásticas, estão as (05) que  fizeram parte da proposta artística de apresentação para a “Mostra Artística do IV Encontro de Pesquisa em Gastronomia do Brasil”. São elas:

  • SQ...

... – Superquadras... - Acrílico sobre tela (80x120), o modernismo das construções de conjuntos habitacionais lineares de Lucio Costa seu similar em feijões reformatados como as melancias quadradas japonesas);


  • Da lata - Acrílico sobre tela (70x40) - Com referências de Andy Warhol a lata de feijão que até a rainha da Inglaterra se rende, ao menos é assim desde 1969 conforme o filme Tommy;


  • Conjunto de dois (02) quadros “Não calem” (30x20) e “Raiz” (30x40) que compõe uma serie que retrata a bateria de equipamentos para o cozimento do feijão ambos em acrílico sobre tela;


  • Samba - Acrílico sobre tela (50x120) (Com inspiração de Delaunay e sua obra Ritmos. Falar em ritmo e feijão sempre vem à mente um sambinha).


Em última análise, ao apreciarmos o feijão em toda a sua complexidade, estamos não apenas alimentando nossos corpos, mas também nutrindo nossa consciência. Vamos lembrar que, por trás de cada refeição, há um universo de histórias interconectadas que merecem ser contadas e respeitadas.

[1] Foi considerado que, segundo o site mst.org.br, “nos últimos anos, essa mistura que é característica cultural da alimentação brasileira, está sendo intensamente substituída pelo consumo de ultraprocessados”.

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